"Para compreender as causas do fracasso do Acordo de Paris e para reagir a ele, é necessária uma agenda política à altura da emergência climática. Essa agenda deve se orientar por uma impreterível convergência entre ciências da natureza e ciências sociais, que se pode designar pelo termo sociofísica", escreve Luiz Marques, em artigo publicado pelo Jornal da UNICAMP e reproduzido por EcoDebate, 02-08-2022.
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
*Este texto serviu de base a uma apresentação no Fórum Permanente da Unicamp, A necessária aproximação da Engenharia com as Ciências Humanas, realizado em 18 e 19 de agosto de 2022.
Em 2017, apenas cinco anos atrás, vivíamos em outro planeta. Um planeta no qual um trabalho publicado por Richard J. Millar, da Universidade de Exeter, e nove coautores na revista Nature Geoscience podia ainda se intitular: “Orçamentos de carbono e trajetórias consistentes com limitar o aquecimento em 1,5 ºC”.[1] Seus autores sugeriam então que a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris, vale dizer, limitar o aquecimento da temperatura média global terrestre e marítima combinadas a 1,5 ºC acima do período pré-industrial (1850-1900), não era ainda “uma impossibilidade geofísica”:[2]
Supondo que as emissões atinjam o pico e diminuam abaixo dos níveis atuais [2015] até 2030, e continuem a partir de então em um declínio muito mais acentuado, o que seria historicamente sem precedentes, mas consistente com um cenário de mitigação ambicioso padrão (RCP2.6), tal suposição resulta em uma faixa provável de aquecimento com pico de 1,2°C a 2 °C acima de meados do século XIX. Se as emissões de CO2 forem continuamente ajustadas ao longo do tempo para limitar o aquecimento em 2100 a 1,5°C, com ambiciosa mitigação não-CO2, é improvável que as emissões líquidas cumulativas futuras de CO2 sejam inferiores a 250 GtC e superiores a 540 GtC. Portanto, limitar o aquecimento a 1,5 °C ainda não é uma impossibilidade geofísica, mas provavelmente exigirá o cumprimento de promessas reforçadas para 2030, seguidas de uma mitigação desafiadoramente profunda e rápida. O fortalecimento das reduções de emissões de curto prazo seria um escudo contra uma alta resposta climática ou contra taxas de redução subsequentes economicamente, tecnicamente ou politicamente inviáveis.
Richard Millar e colegas afirmavam, em suma, que reduções radicais das emissões de gases de efeito estufa (GEE) ofereceriam uma probabilidade de 66% de manter o aquecimento a menos de 0,6 oC acima das temperaturas médias de 2015. Lembremos que em 2012 o aquecimento médio global girava em torno de 0,85oC (0,65 – 1,06 oC) acima de 1880, conforme apontado em 2013 pelo quinto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas).[3] Segundo dados do Goddard Institute for Space Studies (GISS/NASA), esse aquecimento viria a atingir 1oC em 2014 em relação ao período de referência 1880-1920. Os resultados da pesquisa de Millar e colegas pareciam, portanto, trazer ótimas notícias e não surpreende sua grande repercussão na imprensa.[4]
É verdade que a comunidade científica recebeu o trabalho de Millar e colegas com reticências, que procurei registrar em dois artigos também de 2017,[5] baseando-me sobretudo numa revisão de Jeff Tollefson,[6] um articulista da Nature. Em todo o caso, a proposta do trabalho era alentadora: se as emissões de GEE diminuíssem ao longo do terceiro decênio do século abaixo de seu nível de 2015 e continuassem a decrescer vigorosamente após 2030, nada nas leis da física excluía ainda a possibilidade de se conter o aquecimento médio global em 1,5 ºC acima do período pré-industrial (1850-1900). Em 2019, cinco dos dez autores do artigo de 2017 voltaram à carga em outro trabalho, cujo primeiro autor era Christopher Smith, da University of Leeds.[7] Publicado na revista Nature Communications, o artigo se intitulava: “A atual infraestrutura dos combustíveis fósseis não nos condena ainda a um aquecimento de 1,5 ºC”.[8] Sua tese principal reforçava a ideia de que o limite de aquecimento de 1,5 ºC ainda estava ao nosso alcance:[9]
Focamos no aquecimento comprometido a partir dos atuais ativos de combustíveis fósseis. Aqui mostramos que, se a infraestrutura com uso intensivo de carbono for descontinuada no final de sua vida útil a partir do final de 2018, há uma chance de 64% de que o pico de aumento da temperatura média global permaneça abaixo de 1,5 °C. Atrasar a mitigação até 2030 reduz consideravelmente a probabilidade de conter o aquecimento em 1,5 °C, mesmo que a taxa de diminuição do uso de combustíveis fósseis seja acelerada. Embora os desafios estabelecidos pelo Acordo de Paris sejam assustadores, indicamos que 1,5 °C permanece possível e é alcançável com redução de emissões ambiciosa e imediata em todos os setores.
Por controversa que fosse, a tese de que um aquecimento médio global limitado a 1,5 ºC estava ainda no rol das possibilidades geofísicas era talvez sustentável até 2019. Continuar sustentando essa tese em 2022 seria totalmente descabido. Como dito acima, vivemos hoje em outro planeta. Secas, enchentes, picos de calor, incêndios, crises sanitárias e poluição, resultando em aumento da insegurança alimentar, inclusive nos países ricos, tornam-se agora fenômenos cuja magnitude não tem precedentes nos registros históricos. Tais catástrofes tornam-se dia a dia mais intensas, mais frequentes e potencialmente mais letais, a exemplo do que ocorreu no verão de 2021 e no verão atual, no hemisfério norte. Seus impactos ocorrem agora em quase todas as latitudes do planeta, matando, ocasionando sofrimento inaudito e destruindo infraestrutura de modo generalizado. Esses impactos estão agora em uma curva muito mais agressiva de aceleração, e é importantíssimo atentar para o fato de que a agressividade dessa curva não foi prevista pelos modelos.
Não foi suficientemente destacada a afirmação do Sexto Relatório do IPCC: “A extensão e a magnitude dos impactos das mudanças climáticas são maiores do que as estimadas em avaliações anteriores (alta confiabilidade)”.[10] De fato, ninguém previa que em 2021 o Canadá conheceria uma temperatura de 49,6 oC. Não se previa tampouco que em 2022 grandes rios perenes como o Pó, o Reno, o Loire, o Ródano, o Danúbio, o Tâmisa,[11] o Yang-Tsé na China (o maior rio da Ásia) e o Colorado nos EUA, entre muitos outros grandes rios, chegassem a níveis tão baixos ou viessem mesmo a secar completamente em longos trechos, comprometendo a navegação, o resfriamento dos reatores nucleares e o abastecimento de água. Ninguém previu, enfim, que os incêndios nos países da União Europeia em 2022 devastariam mais de 700 mil hectares até 19 de agosto,[12] com prognósticos de 1 milhão de hectares queimados até o final do ano. A área queimada nesses países até meados de agosto é o dobro da área queimada na média do período 2006-2021, como mostra a Figura 1.
Figura 1 – Área queimada (ha) nos países da União Europeia até meados de agosto de 2022 (vermelho), média e áreas mínimas e máximas queimadas do período 2006-2021 (Fonte: European Forest Fire Information System (EFFIS), 15/VIII/2022)
Uma das causas principais desse agravamento generalizado dos desequilíbrios climáticos radica no fato de que desde 2016 evidencia-se uma segunda fase de aceleração do aquecimento, estampada na Figura 2.
Figura 2 – Temperaturas médias superficiais, terrestres e marítimas combinadas, em relação ao período de base 1880-1920, baseadas nos dados do GISTEMP. Médias anuais: curvas com quadrados pretos (azul); curvas médias a cada 11 anos (vermelho) e melhor tendência linear entre 1970 e 2015 (verde), com aquecimento médio de 0,18oC por década. As flechas assinalam os efeitos dos 2 “Super El Niños” de 1998 e 2016 (Fonte: James Hansen, Makiko Sato & Reto Ruedy, “Global Temperature in 2021”, 13/I/2021. Climate Science, Awareness and Solutions Program. Earth Institute, Columbia University)
Na primeira fase da aceleração do aquecimento, este evoluiu de uma taxa de 0,07ºC por década (1880-2018) para 0,18ºC por década (1970-2015). A segunda fase dessa aceleração mostra um salto para a taxa atual de 0,32ºC por década, com tendência para uma taxa média de 0,36ºC por década entre 2016 e 2040. A Tabela 1 resume essas duas fases da aceleração do aquecimento:
Tabela 1 – Taxas de aquecimento por década em três períodos (1880-2040), segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) e o Earth Institute (EI)
Períodos | 1880 – 2018 | 1970 – 2015 | 2016 – 2040 |
Aquecimento /década | 0,07°C (NOAA) | 0,18°C (NOAA/EI) | 0,36°C (EI) |
Fontes: Global Climate Report 2019, NOAA; James Hansen & Makiko Sato, “Global Warming Acceleration”. Earth Institute, Columbia University, 14/XII/2020; James Hansen & Makiko Sato, July Temperature Update: Faustian Payment Comes Due”. 13/VIII/2021
O planeta que suscitou os trabalhos de Millar, Smith e colegas passava por um período lento de aquecimento – entre 1999 e 2014 –, período este chamado por vezes de “hiato” no aquecimento global.[14] Hoje, a realidade é outra. Como afirmam James Hansen e Makiko Sato: “Nossa expectativa é que a taxa de aquecimento global para o quarto de século 2015-2040 seja cerca do dobro da taxa de aquecimento de 0,18ºC por década durante o período 1970-2015, a menos que se tomem medidas apropriadas”.[15] Isso significa que conter o aquecimento em 1,5 ºC, tal como se propunham em 2015 os signatários do Acordo de Paris, não apenas se tornou impossível; significa também que esse limite deve ser rompido muito antes do previsto, ou seja, ainda neste terceiro decênio do século e talvez mesmo já no próximo El Niño. Em fevereiro de 2022, Nafeez Ahmed publicou um artigo intitulado: “As promessas da COP26 terão consequências catastróficas, diz o ex-diretor da ciência climática da NASA”. Nele, Ahmed resume bem essa nova realidade, expressa em quatro declarações de James Hansen, segundo as quais não apenas ultrapassaremos o limiar de aquecimento de 1,5 ºC em algum momento deste decênio, como já estamos geofisicamente condenados a um aquecimento de ao menos 2 ºC:[16]
1. “Não há chance de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 oC”.
(“There is now no chance whatever of keeping global warming below 1.5 °C”)
2. “O teto de 1,5 oC no aquecimento global será rompido nesta década”.
(“The 1.5 °C global warming ceiling will be breached this decade”)
3. “Um aquecimento global de ao menos 2 °C está agora incorporado ao futuro da Terra”
(“Global warming of at least 2 °C is now baked into Earth’s future”)
4. “Este nível de aquecimento ocorrerá até meados do século”
(“That level of warmth will occur by mid-century.”)
Para se manter uma chance qualquer de evitar um aquecimento médio global superior a 1,5 °C teria sido necessário iniciar o processo de redução das emissões de GEE até 2020. Essa data emerge de um consenso científico consolidado em 2017 num artigo firmado por Christiana Figueres e por cientistas do Potsdam Institute for Climate Impact Research (PIK) e do Climate Tracker Initiative, entre outros, que o intitularam “Três anos para salvaguardar nosso clima”.[17] Cientes dessa data limite, Christiana Figueres e outras lideranças climáticas criaram já em 2016 a “Missão 2020”, cujo objetivo era generalizar a percepção de que o ano de 2020 era, de fato, a data limite para o pico das emissões de GEE: “Se a proposta é atingir a neutralidade carbono até 2050, então precisamos virar o jogo até 2020”.[18] No mesmo site da “Missão 2020”, Thomas Stocker, co-diretor do IPCC (2008-2015) reforçava o mesmo veredito:[19]
Mitigação retardada e insuficiente impossibilita limitar o aquecimento global permanentemente. O ano de 2020 é crucial para a definição das ambições globais sobre a redução das emissões. Se as emissões de CO2 continuarem a aumentar além dessa data, as metas mais ambiciosas de mitigação tornar-se-ão inatingíveis.
Já em 2017, Jean Jouzel, ex-vice-presidente do IPCC, repisava a data limite de 2020 em uma entrevista: “Para manter alguma chance de permanecer abaixo dos 2 °C é necessário que o pico das emissões seja atingido no mais tardar em 2020”.[20] Em meados de 2019, Hans Joachim Schellnhuber, fundador e diretor emérito do Potsdam Institute for Climate Impact Research, voltava ao mesmo ponto: “A matemática do clima é brutalmente clara: se é certo que o clima não pode ser curado em alguns poucos anos, ele pode ser fatalmente ferido por negligência até 2020”.[21] Finalmente, em uma declaração de abertura da COP25, em dezembro de 2019, Hoesung Lee, diretor do IPCC, alertava os delegados: “Permitam-me lembrá-los que nossas avaliações mostram que a estabilização das mudanças climáticas requer que as emissões de gases de efeito estufa atinjam seu pico no próximo ano”.[22]
Justamente em 2020, a pandemia derrubou as emissões globais de CO2 relacionadas à geração de energia em 5,2%, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE)[23], e, de forma geral, em 6,4%.[24] Essa queda das emissões era sem precedentes e suscitou esperanças de que as emissões houvessem atingido um pico. Esperanças totalmente infundadas, porque o aumento das emissões de GEE é inevitável em um sistema econômico cuja razão de ser é a acumulação do capital, de modo que qualquer desestímulo externo, seja ele uma crise econômica, uma guerra ou uma pandemia, age de modo apenas efêmero sobre esse sistema. Assim sendo, em 2021 as emissões de GEE deram o maior salto após o de 2010, chegando quase aos níveis de 2019, e as emissões de 2022 podem já ultrapassar as de 2019.[25] No que se refere às emissões de CO2 associadas à geração de energia, elas alcançaram, segundo a AIE, “seu mais alto nível na história em 2021”.[26]
Seria interessante saber se Richard Millar, Chris Smith e colegas, após cinco anos e quase 300 GtCO2-eq emitidas desde 2018, ainda mantêm sua hipótese de que um aquecimento médio planetário limitado a 1,5 °C não é ainda uma “impossibilidade geofísica”. Não parece provável que a mantenham, mas, a bem da verdade, sua resposta importa pouco porque a questão da possibilidade ou impossibilidade geofísica de conter o aquecimento global em certo patamar, seja ele 1,5 °C ou 2 °C, nunca foi a questão central. A questão central, quando se fala em níveis de aquecimento ainda evitáveis ou já inevitáveis, não é tanto entender as leis da física, mas entender as interações entre a física, o sistema econômico e a ordem jurídica que garante a permanência desse sistema. O Brasil é um caso exemplar de interação entre física e sociedade.
Aqui, a destruição de todos os biomas por incêndios reflete claramente a crise climática, dada as secas que assolam recorrentemente o país, mas essa destruição resulta sobretudo da atividade criminosa do agronegócio, que de há muito controla o Congresso Nacional e se tornou o maior motor da ruína do país. Segundo o MapBiomas, apenas nos primeiros sete meses do ano de 2022, quase 3 milhões de hectares (2.932.972 ha) foram consumidos por queimadas. “Na Amazônia, o fogo atingiu uma área de 1.479.739 hectares, enquanto que no Pampa foram 28.610 hectares queimados entre janeiro e julho de 2022. Nesse período, foi registrado um aumento de 7% (ou mais de 107 mil hectares) na Amazônia e de 3372% no Pampa (27.780 ha)”.[27]
Apenas para dar uma ideia da magnitude da tragédia climática e dos crimes impunes do agronegócio, a área queimada no Brasil entre janeiro e julho de 2022 é maior que a área do estado de Alagoas (27,8 mil km2). Nessa interação entre física e sociedade, o lado socioeconômico e político sempre foi mais decisivo do que o lado geofísico e tal é a razão por que a resposta à questão do aquecimento inevitável em cada momento histórico deve emergir de um diálogo entre saberes.
Para fazer avançar esse novo e imprescindível diálogo, os economistas devem entender que suas fórmulas de crescimento econômico “sustentável” só servem para agravar o problema, pois ainda muito raros são os que admitem que a economia é apenas um subsistema da biosfera e, em geral, do sistema Terra, o qual de há muito lhe dita, mas em vão, seus limites. Os sociólogos e politólogos, por sua vez, devem sair de suas zonas de conforto e se alfabetizar em ciências do sistema Terra, pois nenhum programa político pode mais ignorar essas ciências. Não faz sentido, por exemplo, lutar por uma reforma agrária democrática, ignorando que o sistema climático está muito rapidamente inviabilizando a agricultura. Por isso, todo programa político digno desse nome deve hoje ser um programa sociofísico, vale dizer, um programa que associe aceleração da mudança social e desaceleração igualmente drástica da mudança do clima, da perda de biodiversidade e da poluição.
De seu lado, os cientistas precisam entender o absurdo de preconizar a mitigação das emissões de GEE nos quadros de uma civilização termo-fóssil, destruidora e poluidora de habitats e dos organismos. E entender esse absurdo implica, para eles, assumir posições políticas radicalmente anticapitalistas. Pois o funcionamento elementar do capitalismo globalizado implica a disjuntiva crescimento-ou-crise, e ambas as situações só fazem aumentar as pressões antrópicas sobre o sistema Terra. A recente “Carta aberta a todos os cientistas do clima” escrita por um eminente cientista como Bill McGuire, exortando-os a assumir suas responsabilidades políticas e a dizer as coisas como eles sabem que elas de fato são, é apenas o último exemplo de uma mudança de atitude que precisa se generalizar:[28]
Enquanto nosso mundo está indo aos poucos para o inferno, muitos de vocês, estudando e registrando sua morte, nada tiveram a dizer sobre o assunto e permaneceram nas sombras, quando era necessário que monopolizassem os holofotes. A justificativa comum é sempre a mesma: desculpas murmuradas sobre a necessidade de objetividade, sobre como não devem se envolver em política, sobre como são apenas fieis registradores de fatos; uma mentalidade de silo que os protege de ter que tomar decisões difíceis ou se envolver com outras pessoas fora de sua zona de conforto.
A sociofísica é a ciência – capaz de combinar pensamento quantitativo e pensamento crítico – requerida pelo novo planeta em que vivemos. É a ciência, em suma, do Antropoceno. À luz da sociofísica, a questão de saber quando a meta do Acordo de Paris foi definitivamente perdida revela-se uma falsa questão, pois essa meta nasceu inalcançável. Não porque em 2015 a ciência do clima a desautorizasse. Ao contrário, nada na ciência implicava então a inviabilidade intrínseca das metas do Acordo de Paris. Mas de que serve esse Acordo e toda a ciência do clima numa sociedade em que, apenas para dar um exemplo, os bancos privados podem canalizar trilhões de dólares para a indústria de combustíveis fósseis após o Acordo de Paris, em flagrante escárnio das evidências científicas e em aberto desprezo pelas condições de possibilidade de sobrevivência das sociedades? Falamos aqui de recursos financeiros da ordem de 4,6 trilhões de dólares apenas entre 2016 e 2021, como mostra o “Banking Climate Chaos”:[29]
Nos seis anos desde a adoção do Acordo de Paris, os 60 maiores bancos privados do mundo financiaram combustíveis fósseis com US$ 4,6 trilhões, sendo US$ 742 bilhões somente em 2021. O financiamento dos combustíveis fósseis em 2021 permaneceu acima dos níveis de 2016, quando o Acordo de Paris foi assinado. De particular importância é a revelação de que os 60 bancos descritos no relatório canalizaram US$ 185,5 bilhões apenas no ano passado para as 100 empresas que mais fizeram para expandir o setor de combustíveis fósseis.
O Acordo de Paris nasceu morto porque sempre careceu das condições sociais e políticas para ser exitoso. Portanto, a questão decisiva nunca foi o texto do Acordo de Paris. A questão decisiva, o que se decide hoje, é a capacidade de mudarmos radicalmente a sociedade, de modo a frearmos o aquecimento global e a perda de biodiversidade em níveis ainda compatíveis com a adaptação humana e de outras milhões de espécies. O que não se pode perder de vista resume-se, enfim, a esta premissa: o Acordo de Paris ou qualquer outro Acordo não impedirá o sistema climático de se aquecer além de nossa capacidade de adaptação. Ele continuará se aquecendo enquanto o capitalismo continuar a existir, e isso por duas razões:
(1) não houve, não há e não haverá num futuro discernível, no âmbito do sistema capitalista, transição em direção a uma matriz energética descarbonizada. Em 2000, os combustíveis fósseis satisfaziam 86,1% da demanda global de energia primária. Em 2020, essa porcentagem caiu para 84,3% e em 2040, segundo projeções do World Economic Forum, os combustíveis fósseis ainda satisfarão 77% dessa demanda.
É desnecessário lembrar que, em números absolutos (e o sistema climático infelizmente só se interessa por números absolutos), o volume de combustíveis fósseis queimados era muito maior em 2020 do que em 2000, e será ainda maior em 2040. Mesmo que prováveis novas pandemias e novas crises econômicas derrubem mais uma vez esse consumo, alguém ainda acredita, após a recuperação desse consumo já em 2021, que as emissões de CO2 cairão pela metade em 2030, em relação a 2010, 2017 ou a qualquer data do gênero, tal como fingem se empenhar os signatários do Acordo de Paris? A guerra da Ucrânia foi o último pretexto para jogar pelos ares o que restava desse Acordo e o recente “Inflation Reduction Act” de Joe Biden nos EUA foi celebrado pela indústria fóssil.[30]
(2) Mesmo se uma transição energética viesse a ocorrer, ela requereria aumento momentâneo do uso de combustíveis fósseis para a mineração dos metais necessários à construção em escala de torres eólicas e placas fotovoltaicas, mantidos os atuais patamares de consumo energético. Portanto, a única forma de nos desviarmos da trajetória de colapso em que avançamos com sempre maior velocidade é diminuir drasticamente o atual nível de consumo energético global da ordem de 580 milhões de Terajoules (0,58 Zettajoules), ou cerca de 13,8 bilhões de toneladas de petróleo equivalente por ano.[31] E isso supõe, é claro, outra organização social, na qual os mais ricos diminuam drasticamente sua pegada carbono para que os mais pobres possam ter satisfeitas suas necessidades básicas. Os ricos terão sempre dificuldade em aceitar isso, mas devem entender que essa diminuição é a única e última tábua de salvação não apenas de sua riqueza, mas de suas vidas.
A discussão sobre a data em que o aquecimento global superará, momentânea e/ou irreversivelmente, as metas do Acordo de Paris (1,5oC – 2oC) pode ser interessante do ponto de vista científico, mas, para as sociedades, o que realmente importa são três fatos centrais:
1. Para a humanidade e demais espécies é de mínima relevância saber se sofrerão os impactos brutais de aquecimentos iguais ou superiores a 1,5oC até 2030 ou, na melhor das hipóteses, alguns anos depois. Ao invés de tentar determinar a que velocidade estamos nos aproximando do caos, o que realmente importa é entender a necessidade imperiosa de mudar de trajetória, de modo a sofrer o menor aquecimento ainda possível em termos geofísicos.
2. Para deter e reverter a aceleração do aquecimento em tempo hábil, é necessário romper com o sistema capitalista, consubstanciado nos sistemas energético e alimentar vigentes, ambos globalizados e agindo em sinergia. Será preciso, em suma, desglobalizar a economia e globalizar a política nos marcos de uma nova democracia dos territórios e de um novo cuidado com o patrimônio natural do planeta.
3. Aos que afirmam, enfim, não ser realista consumar essa ruptura civilizacional neste decênio, é preciso responder que é o realismo que nos trouxe a esta encruzilhada final. Irrealistas são os profissionais do gradualismo. Desde 1990, sucederam-se 9 Relatórios do IPCC e 26 Conferências das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC). E malgrado esses Relatórios e Conferências, as emissões de GEE e suas concentrações na atmosfera não cessaram de aumentar. Entre 2012 e 2019, elas aumentaram à taxa média de 1,1% ao ano, e isso sem contar as emissões decorrentes da mudança de uso de solo, sobretudo desmatamento! Em 2019, elas estavam cerca de 59% mais altas do que em 1990 e 44% mais altas do que em 2000.[32] Se o capitalismo inviabilizou desde sempre o Acordo de Paris, o realismo acobertou e retardou ao máximo a admissão de seu fracasso congênito. As últimas duas COPs tiveram por agenda central estabelecer o Rulebook do Artigo 6 do Acordo de Paris e a agenda da COP 27 no Egito será implementar os mercados de carbono, a receita mágica para transformar a emergência climática em oportunidades de negócios.
As sociedades estão hoje exaustivamente alertadas pela ciência sobre o que os próximos anos deste decênio e do próximo lhes reservam. Evitar o ainda evitável requer, doravante, que elas tomem em mãos a governança do planeta, deixando de lado os nacionalismos militaristas. Continuar a subestimar as ameaças existenciais que pesam sobre todas as sociedades, ricas e pobres sem distinção, equivale a se condenar ao suicídio.
Numa palavra, sobreviver neste novo planeta supõe a construção de uma sociedade ecodemocrática, na qual os direitos humanos sejam enfim compreendidos como uma dimensão dependente e indissociável dos direitos da natureza. Todo o resto, por importante que possa parecer, é ilusão. É apenas mais um avatar do “realismo”.
[1] Cf. Richard J. Millar et al., “Emission budgets and pathways consistent with limiting warming to 1.5 °C”. Nature Geoscience, 18/IX/2017.
[2] Cf. Millar et al. (2017): “Assuming emissions peak and decline to below current levels by 2030, and continue thereafter on a much steeper decline, which would be historically unprecedented but consistent with a standard ambitious mitigation scenario (RCP2.6), results in a likely range of peak warming of 1.2–2.0 °C above the mid-nineteenth century. If CO2 emissions are continuously adjusted over time to limit 2100 warming to 1.5 °C, with ambitious non-CO2 mitigation, net future cumulative CO2 emissions are unlikely to prove less than 250 GtC and unlikely greater than 540 GtC. Hence, limiting warming to 1.5 °C is not yet a geophysical impossibility, but is likely to require delivery on strengthened pledges for 2030 followed by challengingly deep and rapid mitigation. Strengthening near-term emissions reductions would hedge against a high climate response or subsequent reduction rates proving economically, technically or politically unfeasible”.
[3] Cf. IPCC, Fifth Assessment Report Climate Change 2013. The Physical Science Basis, Summary for Policymakers, p. v: “Os dados da temperatura média global da superfície da terra e do mar, tal como calculados por uma tendência linear, mostram um aquecimento de 0,85oC (0,65oC a 1,06oC) C ao longo do período 1880-2012” (“The globally averaged combined land and ocean surface temperature data as calculated by a linear trend, show a warming of 0.85 [0.65 to 1.06] °C, over the period 1880 to 2012”).
[4] Veja-se, por exemplo, “Chance de 1,5 oC é maior do que se imaginava (mas ainda bem pequena)”. Observatório do Clima, 19/IX/2017; Damian Carrington, “Ambitious 1.5C Paris climate target is still possible, new analysis shows”. The Guardian, 18/IX/2017; “Limiter le réchauffement climatique à +1,5 oC est encore possible, si…”. L’Express, 19/IX/2017.
[5] Cf. L. Marques, “Esperanças científicas e fatos políticos básicos sobre o Acordo de Paris”. Jornal da Unicamp, 25/IX/2017; Idem, “Tarde demais para 3oC?”, Jornal da Unicamp, 21/XI/2017.
[6] Cf. Jeff Tollefson, “Limiting global warming to 1.5 oC may still be possible”. Nature, 18/IX/2017: “some researchers are already questioning the conclusions”.
[7] Os cinco autores em comum nos dois trabalhos são: Richard J. Millar, Piers Forster, Myles Allen, Jan Flugestvedt e Joeri Rogelj.
[8] Cf. Christopher J. Smith et al., “Current fossil fuel infrastructure does not yet commit us to 1.5 °C warming”. Nature Communications, Janeiro de 2019.
[9] Cf. Chris Smith et al., cit. (2019): “We focus on the committed warming from present-day fossil fuel assets. Here we show that if carbon-intensive infrastructure is phased out at the end of its design lifetime from the end of 2018, there is a 64% chance that peak global mean temperature rise remains below 1.5 °C. Delaying mitigation until 2030 considerably reduces the likelihood that 1.5 °C would be attainable even if the rate of fossil fuel retirement was accelerated. Although the challenges laid out by the Paris Agreement are daunting, we indicate 1.5 °C remains possible and is attainable with ambitious and immediate emission reduction across all sectors.
[10] Cf. IPCC, Sixth Assessment Report, Working Group II, Impacts, Adaptation and Vulnerability, Summary for Policymakers, 2022, p. 8: “The extent and magnitude of climate change impacts are larger than estimated in previous assessments (high confidence)”.
[11] Cf. “Seca intensifica crise energética na Europa”. ClimaInfo, 15/VIII/2022
[12] Cf. “Forest fires have burned a record 700,000 hectares in the EU this year”. Euronews, 19/VIII/2022.
[13] Cf. “Siberian Wildfires Burn 3 Mln Hectares of Forest Since January – State Watchdog”. The Moscow Times
[14] Cf. Jeff Tollefson, “Global warming ‘hiatus’ debate flares up again”. Nature, 24/II/2016.
[15] Cf. James Hansen & Makiko Sato, July Temperature Update: Faustian Payment Comes Due”. 13/VIII/2021: “We should expect the global warming rate for the quarter of a century 2015-2040 to be about double the 0.18°C/decade rate during 1970-2015, unless appropriate countermeasures are taken.” Disponível aqui.
[16] Cf. Nafeez Ahmed, “COP26 Pledges will have Catastrophic Consequences, Says Ex-NASA Climate Chief”. Byline Times, 16/II/2022.
[17] Cf. Christiana Figueres, Hans Joachim Schellnhuber, Gail Whiteman, Johan Rockström, Anthony Hobley & Stefan Rahmstorf, “Three years to safeguard our climate”. Nature, 29/VI/2017.
[18] Veja-se o site da Mission 2020: “If we are to reach net zero emissions by 2050, we must turn the corner by 2020”. Disponível aqui.
[19] “Both delay and insufficient mitigation efforts shut the door on limiting global mean warming permanently. The year 2020 is crucial for the definition of global ambitions on emissions reduction. If CO2 emissions continue to rise beyond that date, the most ambitious mitigation goals will become unachievable.”
[20] Cf. Pierre Le Hir, “Réchauffement climatique: la bataille des 2C est presque perdue”. Le Monde, 31/XII/2017.
[21] Cf. Matt McGrath, “Climate change: 12 years to save the planet? Make that 18 months”. BBC, 24/VII/2019: “The climate math is brutally clear: While the world can’t be healed within the next few years, it may be fatally wounded by negligence until 2020”.
[22] Cf. Statement by IPCC Chair Hoesung Lee, “Let me start by reminding you that our assessments show that climate stabilization implies that greenhouse gas emissions must start to peak from next year”. Disponível aqui.
[23] Cf. “Global Energy Review: CO2 Emissions in 2021. Global emissions rebound sharply to highest ever level”, março de 2022.
[24] Cf. Jeff Tollefson, “Covid curbed 2020 carbon emissions, but not by much”. Nature, 21/I/2021.
[25] Cf. Fiona Harvey, “Carbon emissions to soar in 2021 by second highest rate in history”. The Guardian, 20/IV/2021.
[26] Cf. IEA, “Global CO2 emissions rebounded to their highest level in history in 2021”. 8/III/2022. Disponível aqui.
[27] Cf. MapBiomas, “Amazônia e Pampa lideram queimadas de Janeiro a Julho de 2022”. Disponível aqui.
[28] Cf. Bill McGuire, “An open letter to all climate scientists”. Brave New Europe, 25/VII/2021: “While our world has been going to hell in a handcart, many of you studying and recording its demise have had nothing to say on the subject and have remained deep in the shadows, when what has been needed is for you to hog the limelight. The common justification you have used is always the same, muttered excuses about the need for objectivity, about how you shouldn’t become involved in politics, about how you are merely faithful recorders of facts; a silo mentality that shields you from having to make difficult decisions or engage with others outside your comfort zones”.
[29] Cf. “Banking on Climate Chaos Report 2022”, produzido por Rainforest Action Network, BankTrack, Indigenous Environmental Network, Oil Change International, Reclaim Finance, Sierra Club e Urgewald: “The report documents that in the six years since the Paris Agreement was adopted, the world’s 60 largest private banks financed fossil fuels with USD $4.6 trillion, with $742 billion in 2021 alone. 2021 fossil fuel financing numbers remained above 2016 levels, when the Paris Agreement was signed. Of particular significance is the revelation that the 60 banks profiled in the report funneled $185.5 billion just last year into the 100 companies doing the most to expand the fossil fuel sector”. Disponível aqui.
[30] Cf. Matthew Brown & Michael Phillis, “Climate change? The Inflation Reduction Act’s surprise winner, the US oil and gas industry”. USA Today, 18/VIII/2022.
[31] Veja-se: “Terajoules of energy used globally this year”. The World Counts. Disponível aqui.
[32] Cf. J.G.J. Olivier & J.A.H.W. Peters, “Trends in Global CO2 and Total Greenhouse Gas Emissions 2020 Report”. PBL Netherlands Environmental Assessment Agency, 20/XII/2020: “In 2019, the growth in total global greenhouse gas (GHG) emissions (excluding those from land-use change) continued at a rate of 1.1% (±1%). (…) “Global greenhouse gas (GHG) emissions have increased, on average, by 1.1% per year, from 2012 to 2019. (…) The 2019 global GHG emissions excluding those from land-use change were about 59% higher than in 1990 and 44% higher than in 2000”.